Capítulo Único
Por Trás da Mascara
Rainre deixou seus aposentos assim que caíra a noite. Com passos furtivos, ela andou pelo QG o mais silenciosamente possível, chegando rapidamente até a cerejeira centenária. Assim que se aproximou da grande arvore, a kitsune viu as sombras perto dela se moverem, porém não sentiu nenhum temor, já sabia de quem se tratava.
- Já estava pensando que não viria, Rainre. – Disse Ashkore. A voz do dragão saiu abafada, como sempre devido a mascara. A jovem virou-se na direção dele e elevou levemente a cabeça. Querendo ou não, ele ainda era quase cinco centímetros mais alto do que ela.
- O que você queria desta vez? – Indagou tentando manter-se o mais distante possível. Pelo menos era o que sua voz indicava. Não era tola para saber que simplesmente por ir ver constantemente o mascarado já corria por si só um grande risco.
- O de sempre. – Afirmou o mascarado encarando os olhos de um tom rosa cintilante. Os olhos felinos mais belos que já vira. Apesar de as lentes da mascara a impedirem de ver seus olhos, não o impediam de ver as formosas feições dela que, depois de muito lutar consigo mesmo, admitiu serem belíssimas.
Rainre a muito custo não desviou o olhar do dele, encarando as lentes carmins com determinação. Detestava ter de dar informações a Ashkore, mas não tinha escolha. Bom, não mais. Estava naquela situação por sua própria culpa. Agora teria de lidar com as conseqüências de seus atos.
Fossem quais fossem.
Ah, ainda se recordava do dia em que se aliara aos traidores. Ambos se recordavam na verdade. Aquele fora um dia de muitas emoções.
“Rainre estava em mais uma de suas missões na Costa de Jade. Era um dos poucos membros da guarda que não possuía problema algum em ter de patrulhar a floresta e a aldeia dos kappas.
Ela era uma das recrutas da Guarda da Sombra, e o peste de seu chefe, o Nevra, não perdia a oportunidade de lhe lançar uma de suas cantadas toscas. Claro, ela sabia muito bem que aquilo era somente o estilo do vampiro, mas não negava que ele precisava aprender quando era o momento para parar.
Desde que deixara sua aldeia natal, nas Terras de Jade do Norte, desejara viver sua própria vida. Longe das obrigações indesejadas que meus pais impunham sobre si. Rainre era uma kitsune, mas sua aparência se assemelhava muito a de um Maülix. Os cabelos longos e brancos com as mechas negras na franja, a pele clara de uma maciez igual à seda, os olhos rosados e claro: as sete caudas azuis e as orelhas felinas como as do próprio Maülix.
Assim que chegara ao Quartel General, percebera que Miiko a olhava estranho, e foi então que reconhecera a ex-princesa de seu próprio reino, entendendo assim o motivo aparente para que sua conterrânea parecesse ter uma espécie de rancor por ela.
Foi pouco antes de fazer o teste para entrar na guarda e acabar caindo na Sombra, teve uma seria conversa com a Líder da Guarda de Eel, fora quando ambas acabaram por declarar que tentariam ter uma convivência amigável.
Desde então, Miiko tem se mostrado uma boa líder e possível amiga...
Até aquele dia.
Rainre andava calmamente pelas terras de Jade quando, sem querer, acabou esbarrando com a cabeça em um galho de arvore, abaixando-o. Foi como se fosse uma alavanca. E afinal, de fato o era.
Do solo, abriu-se uma passagem. Uma escadaria de pedras que não mostrava seu real fim. E, apesar de hesitante, a curiosidade foi maior.
Desceu as escadarias com cuidado, mesmo que a uma velocidade consideravelmente alta. Quando chegou a uma parte que parecia ser mais linear e os degraus desapareceram deixando apenas um caminho, a passagem fechou-se, deixando Rainre a sorte de sua própria visão noturna.
Determinada a descobrir aonde tudo aquilo iria dar, Rainre encontrou outra escadaria de pedras, e subindo-a, chegou até um local que mais lhe pareceu um refugio particular, e pelar paredes de rocha sólida e pelo barulho muito baixo do oceano, não duvidava que estivesse próxima uma das extremidades da ilha.
A kitsune pensou em adentrar um pouco mais no lugar e explorá-lo, porém sentiu uma mão em sua boca e a outra em sua cintura, imobilizando-a. Ambas estavam meio úmidas, porém pela textura, tratava-se de um homem. Um consideravelmente mais alto do que ela. Se bem que... Boa parte da população masculina era mais alta do que ela por conta de seus magníficos 1,65 de altura.
- Pelo que vejo, gatinhas são mesmo muito curiosas, não? O que devo fazer com você agora que descobriu meu esconderijo? – Indagou uma voz masculina. Esta estava muito rouca e carregada de fúria, mas nenhum destes fatores a impediu de reconhecer seu dono como sendo o Mascarado. Só o vira uma vez, e fora a mesma vez que ouvira a voz dele.
Aquele timbre era simplesmente inesquecível. No entanto... Estava diferente naquele momento em especial. Parecia estar desimpedida, assim como ela pôde sentir o hálito dele em sua nuca. Isto significava que... Que ele havia tirado sua mascara!
Rainre arregalou os olhos perante a perspectiva de poder descobrir quem afinal era o grande traidor da Guarda de Eel. Infelizmente o Mascarado pareceu adivinhar seus plano, pois a apertou ainda mais contra ele, fazendo-a notar que ele, ironicamente, se encontrava despido da parte de cima de sua armadura.
- Se tentar qualquer coisa, quebro seu pescoço. – Ameaçou, e ela bem sabia que não era um blefe. Oh, situação.... Como sairia dela naquele momento...? Por Eldarya!
Foi quando uma idéia surgiu-lhe na mente. Era uma kitsune, não era? Isto certamente haveria de ser seu trunfo. – S-se eu fosse você não faria nada com minha pessoa. – Alertou Rainre tentando ser o mais convincente possível. – Tenho um companheiro a poucos metros de onde encontrei a entrada para cá. Se fizeres qualquer coisa comigo, serás descoberto e o teu fim... – Já estava blefando mesmo, porque não exagerar ainda mais? Tinha a mais total certeza de que o Mascarado não acreditara em uma palavra do que dissera. – Além do mais... Posso ser de grande ajuda.
Ashkore estava surpreso pela ousadia da garota. A maioria estaria tremendo de medo e implorando para que não fosse morta. Aquela não. Aquela garota inventava estar acompanhada e ainda por cima oferecia sua ajuda a ele. Mesmo sabendo que ele era um dos traidores.
Certo, em sua atual condição seria mais fácil seduzi-la do que assustá-la, porém era inegável que aquela kitsune era surpreendente.
Sorriu, o que aconteceria se... – Então o que acha de tornar-se uma aliada? – A proposta dele a surpreendeu. Estaria falando sério?
A resposta para a indagação da garota veio velozmente. Sentiu as mãos dele afrouxando o aperto ao seu redor e em poucos segundos já não mais lhe rodeavam, porém deixaram uma estranha sensação de calor pelo corpo da garota. – Não se atreva a se virar. – Ordenou. Rainre não ousou desobedecer. Passaram-se então alguns minutos que o ouviu fazer alguma coisa até que o homem mascarado se pronunciasse novamente. – Pronto, vire-se. – Mandão! Ela queria gritar que não era obrigada a nada, porém preferiu segurar seu gênio.
Quando a kitsune olhou para o homem a sua frente viu-o com a típica mascara de dragão, porém era apenas aquilo a cobrir-lhe o rosto. A parte de cima da armadura estava ausente, revelando um torso cor de oliva musculoso com várias cicatrizes. A calça era a mesma da armadura, mas era inegável que o Mascarado havia acabado de sair do que deveria estar sendo um belo de um banho.
- Se vai mesmo ser minha infiltrada naquele QG de traidores... – Irônico, ele os traia e queria a destruição deles, e eles eram os traidores. Pensou a jovem com sarcasmo. – Deveria e dizer seu nome.
Foi então que se recordara. A primeira vez que o vira fora quando ele estava em plena fuga e os dois acabaram se esbarrando perto da cerejeira centenária. Foi menos de cinco minutos, ele dissera algo e logo desaparecera, mas permanecera incrustado na memória dela.
- Sou Rainre. Recruta da Sombra. – Era tudo o que ele precisava saber.
- Me chame de Ashkore, Rainre...”
Desde aquele fatídico dia, ela e o dragão encontravam-se ao menos uma vez a cada semana na cerejeira centenária no horário que dava. Na maioria das vezes, durante a noite.
Ashkore custava a admitir, mas sempre que faltavam poucas horas para encontrar a kitsune, sentia seu peito encher de uma ansiedade antes desconhecida. Deliciando-se com o olhar rosado e perspicaz dela. Fora que Rainre já demonstrara sua lealdade infinitas vezes. Tanto que ele chegava a desconfiar se era mesmo real.
- Creio que você já notou que, por incrível que pareça, o QG anda numa surpreendente paz. As buscas pelo seu esconderijo continuam, assim como por mais pedaços do cristal... Em geral: nada de interessante a ser relatado além da minha própria curiosidade. – Não queria, era certo de que não queria, mas controlar-se foi impossível e acabou por soltar uma gargalhada. Rainre sempre deixara claro que desejava vê-lo sem a mascara. Porém, sabia que, mesmo sem que realmente percebesse, tinha ciência que ela conhecia o passado dele. O que poderia pensar ao saber quem se escondia por trás daquela armadura?
Não tinha duvidas que ela guardaria seu segredo, porém por alguma razão, o que aquela kitsune felina pensava dele lhe importava. E como importava. Era um idiota, bem sabia, mas era impossível evitar.
- Sabe que não posso lhe mostrar. – Relembrou-a, fazendo o ar ficar levemente mais pesado. Era sempre assim quando falavam sobre aquele assunto em particular. Rainre suspirou, derrotada. Sabia que ele nunca iria confiar nela plenamente, mas por alguma razão admitir aquilo doía. De uma forma estúpida, sim, mas doía.
- Eu sei. Mas não pode me culpar por tentar. – Deu de ombros inclinando a cabeça para mais perto dele. E, foi naquele momento que viu algo de interessante na armadura dele: os fechos do capacete. E se...?
Rainre sorriu, no exato momento que sua idéia se concretizou em sua mente. Seria arriscado? Claro! Mas nada custava, não?
A kitsune se lançou sobre o dragão que ficou estático pelo contato dela. As mãos habilidosas da jovem voaram para o fecho do capacete e os destravaram. Ela fechou os olhos antes de retirar a máscara, sabendo que não olharia para o rosto dele, apesar da curiosidade. Sem mais demoras, Rainre beijou-o no canto da boca, tocando levemente os lábios. Foi praticamente um beijo na bochecha, sim sabia, mas não pôde evitar que seu coração acelerasse como um louco.
Ashkore estava estático. Ela tirara sua máscara! E ainda por cima o beijara. Na bochecha, sim, mas podia sentir o canto dos lábios dela tocando os seus, e isto o desconcertou intensamente. Não esperava aquela reação dela, muito menos que Rainre soubesse onde fosse o fecho de seu capacete, no entanto era inegável que, mais uma vez, fora surpreendido.
Quando o rosto dela se afastou do seu, ele sabia estar vermelho, tanto quanto os detalhes de sua armadura, porém, não de raiva. Estava corado, por culpa daquela kitsune. Percebeu, ainda mais surpreso, que os olhos de Rainre permaneciam ocultos pelas pálpebras. Quando ela colocara, muito lentamente, sua mascara novamente no lugar, como se temesse fazer algo de errado, e fechara novamente os fechos, foi quando revelara as íris cor de flor, brilhantes em excitação. O dragão podia ouvir de onde estava os batimentos cardíacos acelerados da kitsune, que muito se assemelhavam aos seus. Sorriu, ela também se sentia afetada.
Rainre estava com as bochechas extremamente carmins, o que bem era percebido devido sua pele alva. No entanto, não arrependia-se. Ashkore poderia surtar, chamá-la de louca e o quer mais que fosse. Ainda assim não se arrependeria.
Já sabia que a pele dele era como olivas, mas a textura do rosto dele contra a do seu, assim como o calor morno que emanava era algo que não imaginara. Mas certamente, apreciara.
Ashkore nada disse, apenas levantou-se com ela o seguindo, e andou em direção as arvores que rodeavam a grande arvore antiga que muito já havia visto. Ao olhar para as folhas rosadas, assim como os olhos daquela que tanto mexia com ele, tomou uma decisão.
Virando para trás uma única vez, viu-a saindo dali furtiva como uma gata, não hesitou em chamá-la. Tinha de confiar naquela coisa estranha que parecia haver entre eles. – Rainre! – Ao ouvir a voz do dragão a chamando, a kitsune se virara na direção dele, olhando para o homem mascarado. – Preciso que venha até mim, amanhã. No esconderijo da praia isolada. – Falou simplesmente antes de desaparecer entre as sombras deixando-a confusa e um tanto perdida.
Sacudiu levemente a cabeça. Logo em seguida a garota retornara ao seu quarto tão furtivamente quando saíra, deitando-se como se nada tivesse acontecido.
Pouco antes de dormir, Rainre teve certeza de algo: Gostava de Ashkore. E, o pior de tudo, gostava dele mais do que como amigo.
Ah, estava ferrada, bem sabia. Mas tinha de lidar com as conseqüências de seus atos afinal.
*~*~*
O dia seguinte passara voando, tanto que ela nem se dera conta de que já se aproximava do horário do pôr do sol. Quando percebeu, Rainre já havia dado uma desculpa qualquer ao pessoal da guarda e rumava para a praia.
Estava um pouco nervosa, sim, era um fato, apesar de que nada de novo aconteceria. Iria apenas encontrar Ashkore como já fizera outras mil vezes. Mesmo que o convite dele tenha sido tão... Estranho.
Assim que chegara até a praia isolada, sentiu se braço ser segurado por um toque que já bem conhecia. Não protestou, apenas achou melhor deixar-se ser guiada com os olhos fechados.
Ao abrir os olhos, Rainre viu-se numa parte da praia que ainda não conhecia. As ondas eram calmas e quase não mostravam nenhuma alteração nas águas, o sol parecia se esconder de uma forma mais mágica e mais intensa ali, a areia era mais dourada e contrastava com seus trajes.
- É... Lindo. – Não conseguia encontrar uma palavra mais especifica para aquele lugar. Estava deslumbrada. Mesmo com as mascara, pôde percebê-lo sorrindo.
- Sabia que iria gostar. – Disse. Ashkore sabia que depois daquele dia tudo entre eles mudaria. Talvez para o bem... Ou quem sabe para o mal. Mas esperava sinceramente que aquela loucura que se instaurava em seu peito parasse depois que ela visse.
- Bom... O que você gostaria de me mostrar? Digo... De falar comigo? – Indagou deixando a curiosidade sair. O dragão suspirou já sabendo que seria aquilo que ela diria. Sua kitsune era tão previsível às vezes.
- Sabe Rainre, desde que você apareceu no meu esconderijo naquele dia, tenho percebido coisas diferentes. Você é uma preciosa aliada, mas não deixo de me divertir sempre que estou ao seu lado. Você... Me faz bem. – Admitir aquilo normalmente seria mais difícil do que arrancar uma perna, e de fato saíra com muita dificuldades, mas dissera afinal. Ela sabia. Pelo menos da primeira parte.
- Ash... – Rainre estava surpresa, eram as palavras mais sentimentais que ele já lhe dissera, e expressavam perfeitamente o que ela sentia em relação ao homem a sua frente. Ah, e como ele adorava ver aquelas íris rosadas daquele modo. Mas não queria mais que ela lhe chamasse por aquele nome. Queria ouvir naqueles lábios seu verdadeiro nome.
- Não me chame assim nunca mais. – Ordenou. Levando as nãos aos fechos da mascara, destrancando-os rapidamente. Sem demora a mascara voou ao chão, revelando seu rosto. – Meu nome verdadeiro é Lance.
Lance. O irmão de Valkyon que falecera algum tempo antes de ela chegar ali. O amor antigo de Miiko. Era... Por ele que seu coração batia? Rainre custava acreditar, mas sim, estava diante de seus olhos.
Ashkore... Ou melhor dizendo, Lance, era um dos homens mais belos que a kitsune já vira. Os cabelos brancos eram curtos e bem organizados, o contraste perfeito com a pele oliva do rosto dele. Os olhos de um azul perspicaz eram de um tom extremamente similar com o anil das águas banhadas pela luz do poente atrás deles. Uma cicatriz mais clara descia da base esquerda do nariz dele até uma pequena parte da bochecha direita, porém apenas o tornava ainda mais bonito.
Não era coincidência ser o irmão mais velho de Valkyon, mas Rainre o achava muito mais belo que o irmão caçula. Lance tinha um ar perigoso que ela descobria gostar. E muito.
- Lance. – Saboreou o nome dele em seus lábios, apreciando o som. De fato, combinava muito mais. Sorriu, queria fazer algo, que certamente seria considerada bem inapropriada, mas não hesitaria.
- Rainre, eu sei que gostaria de ter descoberto antes, mas entenda que tinha de saber se realmente poderia confiar em ti. Coisa que já o faço e até mesmo mais. Então se você puder entender meu lado na historia que eu sei que lhe contaram eu... – Ele estava muito mais nervoso do que previra. Nunca imaginara que uma mulher fosse lhe deixar de tal modo, no entanto, sua kitsune novamente o surpreendera, impedindo que ele terminasse sua frase da forma mais inesperada: Beijando-o.
Inicialmente surpreso, Lance não demorou em envolvê-la em seus braços e retribuir o beijo que se tornava cada vez mais voraz. Desejava-a, percebia. Quando seus lábios deixaram os dela, buscando por ar, o dragão sentiu uma felicidade inimaginável tomar conta de seu peito.
Fosse como fosse, Rainre parecia não se importar com seu passado. E isto o aliviava. Quando olhou nas imemoriais íris cor-de-rosa, viu nelas refletidas o mesmo que havia em si. Sorriu, ela não parava de surpreendê-lo.
As orelhas da kitsune realizavam um movimento leve, assim como sua calda, mostrando sua felicidade, assim como o sorriso radiante em seus lábios.
- Juntos? – Tinha de ter certeza de que não estava ficando louca, afinal eram muitas coisas acontecendo naquele exato momento.
- Juntos. – Confirmou Lance apertando-a ainda mais contra si. Os céus já ganhavam uma coloração mais obscura, as nuvens estavam com um tom mais carmim, e ele tinha a garota que mexia com ele em seus braços.
Nada, nem sua vingança, nem seu passado os separaria. E bem sabia que não demoraria até que começasse a amar Rainre. Assim como sabia que seria recíproco.
Da mesma forma que não tinha duvidas que sua kitsune ainda iria lhe surpreender. E muito.
O fim... Ou talvez um inicio.
Especial de Halloween
Selo Rompido
Rainre andava tranquilamente pela floresta de Eel. Amaldiçoando Miiko por tê-la mandado naquela missão. Sua vontade era queimar a kitsune com as chamas azuis, ou enfiar aquela cabeça orelhuda naquela grade onde ficava o fragmento do grande Cristal do cetro que a "Líder" sempre carregava. Sabia que ela estava mudando, a lider de Eel não era mais a mesma desde que descobrira a verdade sobre Ashkore. Ninguém em Eel era mais o mesmo.
E bom, ela também não. Quanto mais o tempo passava, mais Rainre envelhecia, e ela conhecia as consequências disso. Seu poder aumentava, e tudo piorava. Alguns habitantes já haviam presenciado momentos em que a kitsune maulix [/i]quase perdia o controle. E todos tinham medo. A ameaça da bruxa necromante era nítida, a Lua Violeta se aproximava e com ela, o evento que abria as portas do Purgatório, permitindo a circulação de demônios pelo plano dos vivos, fazendo a linha tênue entre vida e morte ser quase extinta. Os pesadelos corriam soltos.
As crianças tinham medo dos Osstoplasms que brincavam de assustar, os adultos tremiam diante do perigo que Cordélia representava.
Rainre pensava em como seria se ela perdesse o controle. Saber que seu amado Lance estava à sabe-se-lá quantas léguas de distancia, tendo de aturar Valkyon não era exatamente agradável. E principalmente, ter de ouvir Nevra quase 24 horas por dia em suas orelhas era um verdadeiro tormento. Por que justo ela deveria ouvir o lider da Sombra com seus maldizeres sobre Ashkore? Era alguma pegadinha do Destino? Maldito fosse o senso de humor do ser cósmico.
A brisa noturna balançou as árvores, olhando para o céu, Rainre testemunhou a lua Violeta se aproximando de seu ápice. Os humanos chamavam aquela época de Halloweem ou o tal "Dia das Bruxas". A kitsune quase riu da ironia, ajoelhando-se ao chegar na planície que um dia ficara a árvore da Hamadriade, tirando da bolsa que carregava um pequeno pote contendo uma tinta preta feita com, segundo Ezarel, carvão e penas de Ptérocorvus. Abrindo o papel que trazia junto, olhou bem o selo que deveria desenhar. Suspirou.
Aquele plano lhe parecia inútil, ela sabia que seres como o Greifmar não poderiam ser impedidos por um simples encantamento. Era querer parar um rio com uma peneira.
Quando começou a fazer os primeiros traços do circulo de proteção, uma tosse intensa a fez parar. Maldição.
O ar começou a faltar, seu peito ardia, não conseguindo segurar o pincel, este caiu ao chão, melando a mão de Rainre de preto.
A kitsune levou a mão ao peito, sentindo a pele arder, céus, era a segunda vez apenas naquela semana. Não era bom, definitivamente. Respirando fundo, Rainre tentou manter a calma. Era apenas respirar. Mesmo que o ar faltasse, seu cérebro se contraia no crânio, era assustador sentir aquilo, abaixando as orelhas com força, ouvindo aquele rugido e o crepitar daquela chama. Assimilava-se a um raio, quando caia do céu e atingia uma arvore inocente, impiedoso, ressoava em seus ouvidos. Por um instante, ela pensou que os mascotes ao redor teriam voado para longe, com medo, mas eles não podiam ouvir aquilo. Aquele som era exclusivo de suas orelhas.
Era um problema dela.
Aqueles trovões, ressoando em sua mente, aos poucos foram abaixando, era como se as nuvens estivessem dentro dela, se chocando umas contra as outras, fazendo raios atingirem-na em todos os cantos, mas aos poucos, aquilo se transformava em um chiado. Um ruído irritante, ainda incomodo, mas menos doloroso.
Ela se curvou, encostando a testa no chão, reparando na grama úmida. Seu corpo todo, na verdade, estava úmido. E frio. Pensando por um momento, poderia estar chovendo. Mas não havia nuvens no céu. Ela se recordaria, mas as estrelas eram brilhantes demais para permiti-la esquecer-se.
Passando uma das mãos no rosto para limpar o que ela descobrira ser apenas suor, Rainre sentiu a tinta sujá-la. Péssima idéia, agora estava com a face suja de preto. Piscando, após alguns segundos, ela respirou fundo, buscando retomar o controle sobre si. Não podia perder o controle, não poderia permitir que ninguém soubesse daquelas dores.
E principalmente, não poderia permitir que ninguém soubesse a [/í]origem das ditas dores.
Aos poucos, seu coração voltava ao som ritmado. Com respirações profundas, Rainre se permitiu deitar no chão um pouco. Sabia que não era seguro, mas não conseguiu evitar. Sentia todo seu corpo formigando. Suas caudas estavam agitadas. Algo estava errado. Mas a kitsune não sabia dizer do que se tratava.
Contudo, seu corpo se recusava a obedecer aos comandos do cérebro para se levantar. Sentia-se exaurida. Todas as vezes que aquele projeto de pesadelo azul resolvia tentar sair era assim. Mas para sua sorte, conseguia controlá-lo.
Ainda.
- Só mais um minutinho. – Murmurou para si mesma, ficaria ali apenas por mais um minuto, então obrigaria seu corpo a se erguer. Fechando os olhos rosados, podia sentir o corpo queimar. Era uma chama gélida e assustadora, sabia que aquela fraqueza se devia aos portões do submundo estarem quase abertos, mas ainda assim era desagradável. Seu coração parecia um tambor, ela tremia de medo. Aquela sensação se apossava de seu ser, sua visão turvava, respirando fundo, Rainre usou toda a força que poderia ter e se pôs de pé.
Seus joelhos cederam, ela se sentia feita de vidro, cheia de rachaduras, ajoelhada, a kitsune olhou para a frente, sentindo os olhos a enganarem. Tudo estava azul. Apertando os olhos e os abrindo novamente, ela viu as cores em um tom escurecido, ao menos conseguia enxergar.
Mas não gostou do que viu.
Aquela nevoa que a envolvia não era sem propósito. As vestes negras eram idênticas àquelas que Miiko e Valkyon descreveram. As saias se balançavam sobre o vento, os cachos avermelhados também escapavam da coroa floral, os olhos fogosos brilhavam na feição pálida fazendo com que Rainre sentisse um arrepio na espinha.
Droga.
- Não imaginei que fosse verdade. – A voz da mulher soou no vazio, a boca da kitsune estava seca, precisava sair dali. Não queria se declarar uma covarde, mas sabia que não conseguiria brigar com a necromante em seu estado atual.
Rainre tentou se levantar com dificuldade, precisava fugir. Precisava ir a algum lugar onde estivesse segura. Se Cordélia sabia de seu segredo, tudo estaria perdido. Ela conseguiria quebrar o selo. Aquela fera seria libertada.
O que não seria difícil de fazer. Com as portas abertas, o selo já estava naturalmente enfraquecido e mantê-lo dentro de si custava uma energia imensa, mas não poderia fraquejar, nem desistir. O QG não era o melhor lugar, mas... Rainre sabia qual era.
O esconderijo de Lance.
Isolado? Talvez, mas havia um bloqueio mágico que ela havia colocado lá que impedia que a magia lá penetrasse. Seria perfeito.
- É tão magnífico ver que um ser tão poderoso está ai. Eu tentei buscar meios de revivê-lo, mas veja só, ai está você com ele pronto para mim. – Falou a necromante com um sorriso cruel, os olhos da caveira em sua mão brilharam em um azul forte e intenso, cegando Rainre antes mesmo que ela pudesse correr, uma névoa a envolveu, e ela apagou.
*~*~*~*~*~*~*~*~*
Quando a kitsune abriu os olhos, tudo estava escuro, ela não sabia o que era aquilo, aquele lugar era enevoado, como a nuvem que Cordélia jogara sobre ela, mas era diferente, olhando para suas mãos, ela se viu mais pálida que o normal, e o pior: viu labaredas.
Labaredas de chamas azuis. Isso deveria ser normal, Kitsunes usavam o fogo índigo afinal, mas não era aquela a causa. Um rosnado esganiçado atingiu seus ouvidos, e quando ergueu a visão, Rainre finalmente a viu. A fera que guardava dentro de si há anos. Aquele que já a fizera matar toda uma aldeia de faeries e deixar apenas cinzas.
A aparência contorcida, como se tivesse sido esticado e depois encolhido diversas vezes, ao mesmo tempo que não parecia ser completamente solido, em um misto de chamas negras e azuis, o sorriso cruel e mordaz, pronto para devorá-la.
O Greifmar.
- S... – Antes que Rainre pudesse completar o que iria dizer, o ser sobrenatural avançou para ela, não lhe dando oportunidade de se defender, a envolvendo, as presas afiadas fincando-se em seu pescoço, não a cortando, não a matando, mas furando o selo que estava em sua nuca. Ela gritou, sua voz se perdeu no vazio, e então acordou.
Mas quando abriu os olhos, ela estava diferente, olhando para baixo, viu a necromante, pequenina, ela fez um gesto apontando o QG, e então Rainre sentiu que sorria, mas não um gesto natural seu, um sorriso arregaçado e maldoso.
Não era ela, sabia, era a fera, o Greifmar. Ele iria destruir o QG. E ela não podia fazer nada para impedir. Por mais que tentasse, aquele corpo gigantesco e flamejante não era dela.
Fechando os olhos, mesmo podendo ver tudo, sem escolhas, Rainre se entregou ao caos.
*~*~*~*~*~*
Quando a kitsune abriu os olhos, tudo estava escuro, ela não sabia o que era aquilo, aquele lugar era enevoado, como a nuvem que Cordélia jogara sobre ela, mas era diferente, olhando para suas mãos, ela se viu mais pálida que o normal, e o pior: viu labaredas.
Labaredas de chamas azuis. Isso deveria ser normal, Kitsunes usavam o fogo índigo afinal, mas não era aquela a causa. Um rosnado esganiçado atingiu seus ouvidos, e quando ergueu a visão, Rainre finalmente a viu. A fera que guardava dentro de si há anos. Aquele que já a fizera matar toda uma aldeia de faeries e deixar apenas cinzas.
A aparência contorcida, como se tivesse sido esticado e depois encolhido diversas vezes, ao mesmo tempo que não parecia ser completamente solido, em um misto de chamas negras e azuis, o sorriso cruel e mordaz, pronto para devorá-la.
O Greifmar.
- S... – Antes que Rainre pudesse completar o que iria dizer, o ser sobrenatural avançou para ela, não lhe dando oportunidade de se defender, a envolvendo, as presas afiadas fincando-se em seu pescoço, não a cortando, não a matando, mas furando o selo que estava em sua nuca. Ela gritou, sua voz se perdeu no vazio, e então acordou.
Mas quando abriu os olhos, ela estava diferente, olhando para baixo, viu a necromante, pequenina, ela fez um gesto apontando o QG, e então Rainre sentiu que sorria, mas não um gesto natural seu, um sorriso arregaçado e maldoso.
Não era ela, sabia, era a fera, o Greifmar. Ele iria destruir o QG. E ela não podia fazer nada para impedir. Por mais que tentasse, aquele corpo gigantesco e flamejante não era dela.
Fechando os olhos, mesmo podendo ver tudo, sem escolhas, Rainre se entregou ao caos.
*~*~*~*~*~*
Rainre abriu os olhos de uma vez, não conseguiu olhar ao redor, sentindo uma dor profunda em seu pescoço. Parecia que seu corpo inteiro doía. E queimava. Parecia que ela havia sido banhada em cristais derretidos por cada centímetro de seu corpo.
Um vento frio a atingiu e a kitsune sentiu-se arrepiar, notando, assustada, que não vestia mais suas roupas. Suas caudas reagiram de imediato, cobrindo-lhe os seios e a barriga, onde era mais sensível. Por que estaria despida? E principalmente, por que contemplava as estrelas em tal estado de nudez?
Fechando os olhos com força, ela buscou em sua memória momentos em que antecedem o vão escuro que estava sua mente. Olhando ao redor pelos cantos dos olhos, notou que estava sobre a grama perto do Parque do Chafariz.
Ótimo. Um ponto resolvido.
Dois: aquilo ali era um cadáver?
Rainre tentou se levantar, sem sucesso, suas terminações nervosas pareciam ligadas por raios, totalmente doloridas, soltando um ganido de dor, voltando à posição anterior, respirando com dificuldades, ela olhou bem pelo canto do olho, e sim, era um cadáver.
Pior, era o cadáver de uma kitsune.
A uma kitsune que havia naquele QG além dela própria era...
- Miiko! – Exclamou alarmada. Sua relação com a outra kitsune havia se deteriorado, mas não imaginou que de fato veria a outra morta de uma forma tão brutal, com o corpo aparentemente aberto por um rasgo poderoso, sangue espalhado, as costelas expostas e... Céus, as caudas dela foram arrancadas.
Rainre não se surpreendia com horrores, não vivendo a tanto tempo na guarda de Eel, mas ainda assim, aquilo parecia tortura. O QQ parecia estar incendiado em alguns pontos, em vários lugares, chamas azuis e negras.
A kitsune arregalou os olhos. Chamas azuis. Fogo negro. Aquelas volutas...
Greifmar.
Fora ele... Fora ela.
- Ai... – Ela murmurou baixinho, sentindo uma pontada na cabeça, e então, como uma onda gigante atingindo um frágil e flácido polpatata filhote na areia, ela se viu inundada de memórias.
Ela era o Greifmar, ele estava livre, o dominador de pesadelos. A fera destruidora que a habitava fora libertada de seu selo na noite maldita por Cordélia e atacara o QG, matando todos aqueles que ele via pela frente.
Miiko fora à primeira, em seguida... Nevra. Por algum milagre, ela ainda conseguia frear os impulsos da besta flamejante quando ia atacar as crianças, mas era só. Muitos fugiam desesperados do QG, vendo que a guarda não era capaz de protegê-los.
As lágrimas brotaram em seus olhos, ela era um monstro...
Imediatamente, uma parte dela, um lado mais egoísta se aliviou por Lance estar longe. Ele estava “seguro”. Mas ela não. Logo os refugiados poderiam voltar, e talvez quisessem vingança pelas mortes e pelo terror.
Em outras situações, Rainre fugiria, mas se sentia tão dolorida, tão fraca... Talvez tivesse de esperar pela morte.
Fechando os olhos, sentindo as lágrimas silenciosas descerem por seu rosto, ela rezou baixinho, temendo o que poderia vir a ocorrer. Recordava-se de quando entrara na sala do cristal, fora preciso apenas um golpe.
A garra destruíra a pedra gigantesca.
Ouviu passos virem, mas não abriu os olhos, não sentia mais seus olhos a obedecerem. Não conseguia sentir seu próprio corpo responder. O Greifmar era poderoso, mas também exigia muito dela. Muito de sua energia e de sua força vital.
Sentiu-se ser erguida, não conseguia entrar em pânico por não poder demonstrar mais o que se passava com ela, mas ela podia perceber. Conseguia identificar aquele calor, aqueles braços que a acolheram tantas vezes.
Abrindo suavemente os olhos, ela conseguiu ver um borrão em tons parecidos com areia, um tom de luar e... Ah... Aquele azul... Aquele olhar... Mesmo desfocado... Sim.
Era ele. Ele estava bem. E por mais que fosse estranho, ela soube que, quando acordasse, também estaria. De algum modo.
Talvez... Um novo inicio