Sete Anos Atrás
Spoiler The Origins - Ep30 "Por Eldarya"
PDV Mia.
- Mia!
Ouço meu nome, mas meu corpo não responde mais aos meus comandos. A dor me preenche como uma onda de choque e sinto que estou perdendo os sentidos. Não sei dizer o que ou onde dói mais. Em algum lugar da minha mente eu ainda tento entender o que aconteceu, talvez eu tenha sido atropelada por um ônibus ou um caminhão desgovernado, mas eu não lembro de estar na rua... Meu último pensamento é que eu deveria ver minha vida passar diante dos meus olhos, antes da escuridão levar minha alma.
Em algum lugar...
Primeiro sinto meus dedos, mas não consigo movê-los. Então percebo o tecido macio sob meu corpo e o cheiro de mato fresco e oceano. Tento saber se morri, mas mortos sentem o corpo assim? Como um peso morto? Me sinto presa em meu corpo, mas meu cérebro está tão dopado que não sinto angústia. Tento mexer qualquer parte do meu corpo mas apenas meus olhos dentro de pálpebras fechadas respondem. Lentamente, num longo processo de dormir e despertar contínuo, permite que minha consciência crie raízes em meu corpo novamente e, aos poucos, consigo mover levemente meus dedos. Gasto um longo tempo apreciando a maciez desses lençóis. Queria sorrir mas não consigo.
Em algum momento percebo que a secura em minha boca e garganta é dolorosa. Mas de tempos em tempos alguém umedecia meus lábios gentilmente e, de alguma maneira, umedece minha boca e garganta, aliviando a secura. Eu choraria de felicidade se conseguisse, e algum momento meus canais lacrimais voltam a funcionar. E lágrimas correm pelo meu rosto quando a pessoa gentil me ajuda. Sons se reproduzem ao meu redor, mas meus ouvidos não parecem saber ouvir mais.
Acordo e durmo ainda muitas vezes até que eu consiga abrir os olhos, cansada, apenas para fechar rapidamente, assustada com a quantidade de luz que me atinge. E me dou conta que meu corpo inteiro dói demais. Alguém cobre meus olhos com um tecido e logo adormeço novamente. Quando acordo e abro os olhos, descubro uma iluminação bem mais suave, e uma mulher albina, toda vestida de branco, sorrindo para mim.
- Você acordou!
Com esforço, descolo meus lábios ressecados, mas não consigo falar.
- Calma. Vai levar um tempo para você se acostumar.
Ela primeiro umedece meus lábios, me fazendo sorrir de gratidão. E então me oferece água em um canudinho. Ela não parece ser uma enfermeira, só que estou cansada e dolorida demais para pensar. Eu estou morta? Mortos sentem tanta dor? Durmo e acordo mais vezes ainda, e minha memória parece me enganar, pois me surpreendo com ela algumas vezes, até perceber que já tinha visto ela algumas vezes. A cada vez consigo ficar acordada alguns segundos a mais e me sinto mais forte. Em uma das vezes, delirante, vejo um dragão etéreo conversando com a mulher albina, perguntando como eu estava. Em outros momentos, um homem moreno, enorme, de cabelos platinados, estava sentado do meu lado, um olhar gentil e preocupado.
Então eu vi todos reunidos com uma garotinha pequena, cabelos longos e coloridos como um arco íris de tons pastéis, vestido branco longo, descalça, um pequeno par de chifres coloridos na cabeça e um longo rabo roxinho. Ela tocou meu rosto gentil e sorriu para mim.
- Você vai ficar boa logo. Mas tudo será diferente para você a partir de agora. Nada poderá continuar como era. O que vai se tornar? Só o tempo dirá.
Não sei quanto tempo fiquei desmaiando e acordando, até conseguir pronunciar palavras e ficar acordada por tempo suficiente para escutar as respostas ou ao menos lembrar do que falei ou o que foi respondido. Eu estava dentro de uma tenda, ou o que me parecia uma tenda. E a mulher albina, tão branca quanto uma folha de papel, me olhava gentil e calma.
Depois de beber água tentei me lembrar do que eu sabia. E nada me vinha à cabeça. Eu me lembrava de conversar com pessoas. E de ter visto um dragão. Mas não me lembrava o que eu tinha falado, nem o que tinha sido respondido. Encarei os olhos violetas da mulher e perguntei com uma voz que saiu rouca, como um antigo disco LP arranhado.
- Onde eu estou?
- Em Memória. – respondeu a albina, com um sorriso.
Fechei os olhos tentando me lembrar de alguma cidade ou ponto turístico com esse nome. Mas nada me ocorreu. Contudo, ironicamente, minha memória não estava no seu auge, e eu poderia muito bem ter me esquecido.
- Onde fica?
- Num lugar seguro.
Um lugar seguro? O que isso significava? Meu cérebro lento e meu corpo dolorido não ajudavam em nada.
- Por que estou aqui?
- Para ficar segura.
- Segura? Por que preciso ficar segura?
Ela não respondeu e me olhou com tristeza. Então tocou meu rosto com carinho e sorriu, como se eu fosse uma criança a quem não se quer contar uma notícia ruim.
- Nós falaremos disso quando você ficar mais forte.
- E quando será isso?
- Em breve. Não tenha pressa.
Tentei pensar se eu precisava fazer algo, mas o cansaço chegou com força. Ao menos não me sentia dolorida o tempo todo. Curiosamente, quando despertei, me lembrei do que havia perguntado, e das respostas. Sorri satisfeita com meu avanço. Encarei aquela curiosa mulher de branco, e entre um gole e outro, matei outra sede que começava a surgir.
- Por que eu estou tão cansada?
- Você sofreu um choque. Nós estamos trabalhando para salvar sua vida.
- O que aconteceu?
- Você está em coma, em um hospital…
Confusa, falei o óbvio para aquela mulher que parecia querer complicar tudo.
- Em coma? Mas eu estou falando com você! Eu...
Ela ficou em silêncio.
- Você... você existe, não?
- Sim, eu existo. Mas não do jeito que você espera. Seu corpo está em um hospital, na Terra, em coma. Sua alma está aqui, em Memória. Nós estamos tentando te manter viva.
- Como?
Tentei me manter acordada enquanto ela respondia. Mas meus olhos se fecharam contra minha vontade. Eu precisava me lembrar. Como eu podia estar em coma e acordada? Aquilo era um delírio? Mas Morfeu é implacável e me levou para seus domínios sem hesitar.
Ao acordar, observei o ambiente ao meu redor. Não parecia um hospício. Nem um hospital. Era uma tenda, clara, com minha cama no centro, uma cadeira confortável ao lado e uma mesa de cabeceira com água. Não tinha nenhum aparelho, nada que lembrasse que eu estava doente. Olhei a mulher me sentindo confusa, e esperei uma explicação.
- Eu sei que parece confuso, mas logo tudo será esclarecido. Sua prioridade deve ser se recuperar. Nós estamos tendo sucesso e seu corpo está estável na Terra. Valkyon estabilizou ele. O plano está funcionando. Eu sei que você não acredita, mas logo você se sentirá mais forte. Apenas descanse e em breve tudo ficará mais claro.
Assenti em descrença total. Minha mente estava mais clara. Eu ainda me sentia em um estado profundo de confusão, mas ela se desfazia com o passar do tempo, e eu voltava a ter a mente ágil que sempre tive. Realmente me senti mais forte com o passar dos dias e busquei observar os que cuidavam de mim.
O tal do Valkyon vinha me ver regularmente. Uma personalidade calma, serena, firme. Ele não era de muitas palavras. Se sentava ao meu lado, me oferecia água e simplesmente ficava quieto. Como uma pessoa de personalidade também silenciosa, me sentia extremamente confortável ao lado dele, e da segurança que ele me oferecia. O conforto da sua presença me fazia dormir ainda mais, e me acalmava.
Observando bem, ele é extremamente bonito de uma forma exótica. Eu nunca vi um homem como ele. De cabelo platinado, comprido até os ombros, olhos dourados, muito alto, musculoso, e surpreendentemente bronzeado. A pele dele tinha um tom dourado incrível como se ele tomasse sol na praia diariamente. Ele usava uma roupa igualmente exótica, uma calça cinza, coberta parcialmente com peças de uma armadura, camiseta branca e um colete de pele, e peças de armadura nos ombros e braços, protegendo o corpo. E dava para ver muitas cicatrizes, me revelando que ele tinha um passado, no mínimo, conflituoso, bem diferente da calma e tranquilidade que sua expressão transmitia.
A mulher albina era extremamente pálida, os cabelos brancos e longos, os olhos violetas de tão claros. Ela e seu longo vestido branco tinham quase a mesma tonalidade, parecia até que ela usava maquiagem para ficar tão clara, pois nem o rosado natural da pele ela tinha. E isso a deixava etérea, como se um raio delicado de luar se personificasse em uma pessoa, gentil mas não humana. Era surreal.
Mais dias passaram, e quando me senti forte o suficiente, Valkyon me levava para para pequenas caminhadas, me ajudando a ganhar força nas pernas. Eu ficava deitada a céu aberto, mas nunca chovia ali, a vegetação era exuberante e completamente diferente de tudo que já vi na vida. Estava pronta para perguntar que plantas eram aquelas quando dei de cara com o dragão novamente.
- Vejo que você está bem melhor, minha criança!
Eu encarei aquele ser gigantesco sem conseguir pronunciar palavras que fizessem sentido, incerta entre o diagnóstico da loucura e da alucinação. Só não corri pois dependia do apoio do Valkyon para me manter de pé de forma estável e, naquele momento, minhas pernas eram uma gelatina e ele estava evitando que eu desmoronasse no chão. Era um dragão de verdade na minha frente. Olhei em volta e nem a mulher albina, nem o Valkyon pareciam surpresos.
- Esse é Fáfnir. – Valkyon me explicou, como se fosse normal estar frente a frente de um dragão. – Não precisa ter medo.
- Ele nos ajudou a salvá-la. – complementou a mulher albina.
- O-olá. – Tentei soar natural, mas minha voz saiu aguda irritando até meus ouvidos.
Vendo que eu estava a segundos de perder completamente a força das pernas, Valkyon me pegou no colo e me levou para um banco, onde me sentou com gentileza e depois se sentou do meu lado. Minha mente girava em formas de colocar Valkyon na minha frente caso o dragão me atacasse. Dragões comiam gente? Pensei na minha covardia, mas me consolei pensando que o Valkyon era bem maior que eu.
- Como você está, criança? – Vi a boca enorme do dragão se mover e fiquei pasma de entender o que ele falava.
- Bem... é... acho que bem.
- Você vai levar um longo tempo para realmente se reequilibrar. A solução não foi fácil e não agirá rapidamente. Serão anos até que todo o processo se complete, e nós não temos certeza de qual será o resultado.
- Certo. – eu não tinha a mínima ideia do que ele estava falando. Eu me sentia enfeitiçada vendo aquele ser gigantesco parado na minha frente, conversando como se fosse algo banal. O que ele falava? Não importava. Era um dragão! E a adrenalina estava começando a fazer efeito, pois uma agitação típica estava tomando meu corpo.
- Nós teremos tempo para explicar o que você precisa saber e o que precisa aprender.
- Sei. – um dragão estava falando comigo. Só eu fiquei chocada com esse fato? Olhei em volta e Valkyon e a albina estavam completamente indiferentes. – Você é mesmo um dragão? – a pergunta saiu rápido dos meus lábios.
- Sim. Valkyon também é.
Olhei para o Valkyon desconfiada. Ele não parecia em nada com um dragão. Eu estava do lado dele e ele era bem humano para mim. Nada de cara de dragão, nem rabo, nem asas, nem escamas... Estava listando mentalmente tudo que ele não tinha de um dragão, quando vi ele sorrindo divertido.
- Mas você também parece humana e não é. Suas habilidades provam que você não é.
Dei um pulo no banco ao lado do Valkyon. Ele lia mentes?
- No plano astral não há como esconder o que se pensa. Aqui, os pensamentos são projetados da mesma forma como a fala no plano físico.
Pensei um pouco no que ele estava falando, levando um tempo para ser atingida pelo significado das suas palavras.
- Tudo que eu penso vocês ouvem?
- Sim.
Nesse instante morri de vergonha lembrando agora há pouco em que eu estava pensando em como empurrar o Valkyon na minha frente se o Fáfnir me atacasse.
- Não se preocupe, seus pensamentos foram completamente normais para uma situação tão... singular. – Valkyon disse sorrindo, e confirmando que meus pensamentos eram sim um livro aberto para todos.
- Nós estamos acostumados, mas você está viva, e entre os vivos, o pensamento não é o meio de comunicação mais usual. – a albina me explicou.
- Isso é tão confuso... – sussurrei morta de vergonha.
- Apenas saiba que seu corpo foi estabilizado na Terra. Você ainda está em coma, mas não corre mais risco de vida. Mas sua alma ainda não pode sair de Memória, para que você não seja desligada dele.
- Desligada?
- Para que você não morra... – Valkyon me explicou, com um olhar gentil e algo, triste?
- Até que todos os seus corpos estejam devidamente estabilizados e você possa sair de Memória sem risco de morte, você ficará conosco, se reequilibrando. Nesse meio tempo, Valkyon lhe fará companhia e a treinará.
Eu estava quase dormindo de cansaço no ombro do Valkyon nesse momento. Não me ocorreu perguntar o motivo de tanto esforço para me salvarem, nem para que me treinariam, nem um monte de coisas que eu gostaria muito de ter perguntado e anotado em algum lugar da minha mente no qual eu me lembrasse posteriormente.
Eu despertei um ano e meio depois de entrar em coma subitamente, com quase nenhuma memória de quando estive em coma. Algo comum de acordo com os médicos, já que pessoas em coma passam por experiências diferentes. Nenhum médico descobriu o motivo do meu coma, de acordo com eles eu tive um mal súbito, não sofri nenhum acidente, não fiquei doente, não fui envenenada. Absolutamente nada. E quando despertei, estava mais saudável que antes. Não tinha escaras, deficiências nutricionais nem meu corpo definhou nesse meio tempo. Um verdadeiro milagre.